RIO — ‘Por que o Pedro não gosta da gente?”. A pergunta surgiu numa
plateia cuja faixa etária não ultrapassava os 9 anos, colegas de Pedro,
um menino autista, brasileiro, cuja mãe contratara um terapeuta para
explicar o que era a síndrome que afeta uma em cada 88 crianças nos
Estados Unidos — um estudo recente da George Washington University
aponta para uma a cada 38 em idade escolar no mundo. No Brasil, não há
estatísticas oficiais. O desconhecimento da doença, entretanto,
acompanha as mais diversas gerações, especialmente nos momentos de
comoção geral, em que se buscam respostas para o inexplicável — desta
vez, o problema está ligado ao massacre realizado por Adam Lanza, 20
anos, na escola Sandy Hook, na cidade americana de Newtown.
No
Brasil, uma lei aprovada no Congresso, hoje na fila para a sanção da
presidente Dilma Rousseff, ameaça piorar o cenário. Proposta, a
princípio, como um avanço, abre perigosa brecha para a exclusão escolar.
O perigo está no artigo 7º, que modifica a punição aos agentes
escolares que negam o acesso de autistas a instituições de ensino,
isentando de castigo os casos em que “comprovadamente o serviço
educacional fora da rede regular de ensino for mais benéfico ao aluno”.
Caso
seja referendado pela presidente, será apenas o mais novo de uma série
de obstáculos enfrentados por autistas como Pedro, que acabou expulso da
escola duas vezes, e só voltou por força de uma ação judicial impetrada
por sua mãe, Marie Dorion Schenk. Segundo ela, somente com uma ordem
judicial foi possível manter seu filho na escola pública (as
particulares não o aceitaram devido a reclamações de outros
responsáveis).
O preconceito foi reforçado de maneira dramática
pelo massacre da última sexta-feira, quando veio à tona a especulação de
que o jovem teria um transtorno do espectro do autismo, possivelmente a
Síndrome de Asperger. A suspeita nasceu a afirmação do irmão de que o
atirador era “um tanto autista” e, até o momento, é corroborada apenas
por relatos de vizinhos e ex-colegas de classe. Bastou isso para que se
relacionasse o autismo à violência premeditada, gerando uma onda mundial
de revolta entre autistas, familiares e ativistas da conscientização
sobre a síndrome.
O autismo é uma condição caracterizada pela
deficiência de desenvolvimento social, a dificuldade de comunicação e
ocorrência de padrões repetitivos de comportamento. Suas raízes, porém,
ainda não são bem compreendidas pela comunidade científica — há mais de
cem genes mapeados associadas à disfunção. Mas sabe-se que é um
transtorno do desenvolvimento que pode variar de leve a grave, tendo a
Síndrome de Asperger como forma leve. O autismo clássico, por outro
lado, envolve atrasos no desenvolvimento mental e na fala, como
representado no cinema por Dustin Hoffman em “Rain Man”, num desempenho
premiado com o Oscar de melhor ator.
Indivíduos com transtornos
do espectro do autismo muitas vezes são vítimas de bullying na escola e
no trabalho, frequentemente sofrem de depressão, ansiedade e pensamentos
suicidas. Mas especialistas são categóricos ao afirmar que não há
evidência de que eles são mais propensos do que qualquer outro grupo
para cometer crimes violentos. Nenhuma das gradações do austimo envolve
comportamento violento, típico apenas do transtorno de personalidade
antissocial, conhecido popularmente como psicopatia.
Nos Estados
Unidos, um médico afirmou, em entrevista à Fox News, que um Asperger
pode ter “um colapso associado ao comportamento violento”. No programa
“Piers Morgan Tonight”, da CNN, um convidado disse que um sintoma do
autismo é que “algo está faltando no cérebro, uma capacidade de empatia,
conexão social” — o que para estudiosos está ligado, na verdade, à
dificuldade de interação e não à falta de sentimentos. E a conexão
feita, numa matéria do “New York Times”, entre o episódio e o
diagnóstico também foi alvo de críticas.Grupos de defesa de pessoas com
autismo divulgaram notas de repúdio à cobertura do caso de Newtown. A
Sociedade Americana de Autismo escreveu: “Subentender ou sugerir que
existe alguma ligação é errado e prejudicial para mais de 1,5 milhão de
pessoas não violentas que vivem com autismo a cada dia.”
A grave
correlação, porém, não se restringiu a este último massacre. Na esteira
do tiroteiro em uma sala de cinema em Aurora, o apresentador Joe
Scarborough, da MSNBC, disse que atiradores como James E. Holmes estão
“em alguma escala do autismo”.
Para mães e especialistas da área,
a repercussão do massacre representa uma regressão no trabalho para
conscientizar a sociedade sobre o autismo.
— A verdade é que não
há nada que indique que um autista é mais violento do que outras
pessoas. É tão relevante falar que ele era Asperger quanto dizer que
tinha olhos azuis — diz Andréa Werner, mãe de um menino autista de 4
anos.
Um estudo conduzido pelo Hospital Presbiteriano de Nova York
durante cinco anos mostrou que entre as centenas de adultos autistas
monitorados nenhum esteve envolvido em ocorrências com uso de armas.
Entre as mais de mil crianças e adolescentes também analisados, apenas
2% tiveram casos relatados pelos pais por agressividade contra um não
parente — índice menor do que num grupo de controle.
— O autista
tem dificuldade de controlar seus impulsos. Mas essas ações são
direcionadas normalmente ao círculo familiar, até pela dificuldade de
relacinamento. É uma agressividade menos elaborada, ligada a uma
frustração imediata. Pegar uma arma e entrar numa escola para matar
crianças não é um ato impulsivo, é planejado — explica Francisco
Assumpção, professor do Instituto de Psicologia da USP e envolvido há 35
anos em estudos de saúde mental infantil, principalmente o autismo.
O
diagnóstico da Síndrome de Asperger, uma condição na qual os indivíduos
têm habilidades normais de linguagem ou inteligência acima da média em
determinados assuntos, mas lutam para entender regras sociais, se
popularizou muito nos últimos anos. Alguns jovens adultos com a condição
nomeiam-se orgulhosamente de “aspies’’. Temple Grandin, engenheira
agrônoma de renome, Craig Newmark, fundador da Craigslist, Bill Gates e
até personagens da ficção como Sheldon Cooper, o físico que estrela a
série “The Big Bang Theory’’, são apontados comumente como portadores da
síndrome.
Mas se houve algum abrandamento do estigma para as
pessoas com autismo em um mundo que premia aqueles altamente sociáveis,
os especialistas preocupam-se com o fato de que os indivíduos afetados
podem agora ter mais um motivo para evitar a divulgação de sua condição a
professores, patrões e membros da comunidade — muitas vezes o primeiro
passo na sensibilização e difusão do conhecimento.
Foram muitas as
histórias ouvidas pela reportagem. Uma mãe que desistiu de contar a
verdade a seu filho de 14 anos, que pensa sofrer de déficit de atenção,
mas na verdade é Asperger. Outra que pediu para o filho não dizer aos
colegas da nova escola que é autista, com medo de represálias. Um rapaz
que acaba de passar para um concurso da Petrobras tem medo de que seus
novos colegas de trabalho o rotulem como agressivo. Cinco meses depois
de perder o pai, um adolescente Asperger que ficou confuso com o próprio
diagnóstico.
— De repente, caiu por terra toda aquela construção
que a gente ergueu, tijolinho por tijolinho. — afirma Daniela Laidens,
mãe de uma menina autista de 5 anos, referindo-se à psicóloga Elizabeth
Monteiro que fez confusão ao misturar, em entrevista no “Domingão do
Faustão”, os conceitos de psicopatia e Asperger. — Eu sabia que, naquele
momento, aquele público imenso não ia entender de forma clara. O Brasil
não conhece o autismo.
A desinformação sobre a síndrome, porém,
não se restringe ao preconceito. A dificuldade de diagnosticar uma
criança autista, em especial as gradações mais leves, é enfrentada,
constantemente, por mães e pais de autistas. Marie Dorion Schenk, a mãe
de Pedro e de outro menino Asperger, conta que, ao consultar um
“pediatra renomado”, ouviu que seu filho era “mimado”. Ela só obteve o
diagnóstico correto quando foi morar nos Estados Unidos. Para Marie, a
importância da conscientização dos pediatras é parte da luta contra a
estigmatização dos autistas:
— Quando você lê sobre o assunto,
fala-se que o autista se isola. Mas a mãe não percebe isso, porque, com
você, ele tem vínculo. Tem muita mãe de criança pequena que, sem um
diagnóstico correto, entra em negação mesmo percebendo os sinais do
autismo.
Segundo Ricardo Halpern, presidente do Departamento de
Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria, o
problema já foi identificado há alguns anos. Ele admite que é preciso
mais esforços para capacitar pediatras, mas reforça que já são
organizados cursos de capacitação e congressos sobre o tema. Segundo
ele, a identificação de transtornos prejudiciais o desenvolvimento das
crianças é uma das bandeiras da atual gestão.
— Tudo na criança
exige tratamento muldisciplinar. Não basta apenas tratar os sintomas. A
criança está em desenvolvimento. É preciso fazer a interface entre a
escola e a família — defende Assumpção.
O diagnóstico precoce é um
dos principais desafios. Normalmente, as síndromes do autismo são
identificadas em torno dos 5 anos, mas boa parte dos diagnósticos já sai
antes 3 anos. Há casos, entretanto, que a criança já começa a
apresentar alguns sintomas aos 9 meses. Nos Aspergers, as mudanças são
mais sutis.
— A dificuldade está exatamente no fato de os sintomas
serem brandos. É uma sociabilidade que pode parecer bizarra, mas é mais
próxima da vida real — aponta Assumpção.
O tratamento para a
habilitação dos autistas também é um campo que continua a impor desafios
diante da variedade de gradações da síndrome. Hoje existirem dois
métodos amplamente difundidos : o Teacch (Treatment and Education of
Autistic and related Communication-handicapped Children), criado na
Carolina do Norte em 1964 e voltado para aqueles quadros mais
comprometidos, e o ABA (Applied Behaviour Analysis), que trabalha com a
análise de comportamento.
— São poucas as drogas para diminuir os
sintomas e facilitar as abordagens de reabilitação. Mas não há
regressão. Nos quadros autistas, minimiza-se o prejuízo, o que não
significa passar de um autismo grave para leve — explica Assumpção. Às
incertezas, soma-se o alto custo dos tratamentos.
Segundo Andréa,
nos EUA, recomenda-se um acompanhamento de 40 horas semanais, o que
para a mãe de Theo é impraticável. Ela paga de R$ 100 a R$ 150 por hora
de terapia para seu filho, fora a mensalidade da escola particular. O
plano de saúde paga apenas uma cota de horas de terapia. A dela estourou
em março.
— Você pode até entrar na Justiça. Mas acho que não
vale a pena. O governo não ajuda. Já morei em um prédio em que o
porteiro tinha um filho autista. Só para diagnosticar, demorou anos —
lembra.
Mas é o preconceito que as mães e os autistas mais temem.
Marie, mãe de Pedro, teve dificuldades para convencer a diretora da
escola do filho de que era necessário explicar às crianças a síndrome.
Conseguiu uma hora apenas na turma do filho. Na sala de aula, a segunda
rodada de perguntas foi bem diferente da primeira, quando as crianças
queriam entender por que o menino autista não gostava delas. Marie conta
que os colegas de seu filho quiseram saber algo bem simples depois de
entenderem o que era a síndrome: “como a gente pode ajudar o Pedro?”.
— Depois disso, melhorou muito.
Novo manual para o autismo
A
Síndrome de Asperger, um autismo do tipo leve, foi excluída do novo
manual de diagnóstico e estatística para transtornos mentais (DSM, na
sigla em inglês) organizado pela Associação Americana de Psiquiatria, o
DSM-5, que só será publicado em maio de 2013. Agora, os sintomas de
Asperger farão parte do novo item “transtornos do espectro do austismo”,
já usado por muitos médicos. A nova denominação abarcará todas as
formas de autismo, da mais leve à mais severa. As mudanças foram
controversas, já que muitos pacientes com Asperger temem perder
benefícios conquistados por terem diagnósticos menos comprometedores. A
revisão do manual, usado por psiquiatras de vários países, é a mais
importante dos últimos 20 anos.
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